sexta-feira, dezembro 01, 2006

RESSACA PARA UMA AUTOBIOGRAFIA
Al Berto
Permaneço deitado, ignoro o dia, não me mexo, recuso-me a pensar. Durmo como se nunca mais acordasse, e ao acordar já é novamente noite. Como abundantemente, fumo muitos cigarros e bebo pelo menos meio litro de café. Mas, apesar de tudo, e com a prática de muitas ressacas, nem sempre consigo evitar a dor provocada por essa outra ressaca - a ressaca mental. Sempre bebi em quantidade, violentamente, para perder, a noção de mundo, e do mundo. Nunca bebi dramaticamente. E no dia seguinte a ter bebido muito, é como se os sentidos e a memória tivessem sido passados a esfregona e lexívia. E dos sentidos surgem então sensações estranhas. Por exemplo,um orgão qualquer desata a arder, ou perco a visão - cego por instantes, e sou obrigado a tactear-me para me para me certificar que existo. Nada disto é agradável ou desagradável, é um outro estado de singular lucidez que pode prolongar-se horas a fio entre uma espécie de escuridão primordial e a fulguração dum tempo ainda por vir, ou já eterno. Fico assim, perdido no fundo de mim mesmo, sem nome, sem olhar para o que me rodeia, sem corpo que me transporte, sem pensamentos. Quanto à memória, é terrível. Umas vezes vai buscar imagens distantes de acontecimentos que, em geral, ainda virão a suceder. Outras, pura e simplesmente não há memória de nada. Um pouco como se tudo começasse a ser a cada fracção de segundo, e levo um tempo infinito, desumano, para erguer de novo, peça a peça, o que sou. A embriaguez é um momento de vida incendiada, ou suspensa, e a ressaca um tempo de lenta e demorada reconciliação com o mundo, e comigo mesmo. Mas um dia, tenho a certeza, não terei forças para me reconciliar com o mundo, nem vontade de regressar de onde estiver. Continuarei a beber ininterruptamente e não haverá mais ressaca, nem dor. Seduz-me a ideia de vir a morar num corpo que já não sente, etílico talvez, transparente, e com uma leveza de cinzas.
FIM

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