terça-feira, dezembro 19, 2006

Herberto Helder
(a carta da paixão)


Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde
se formam as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaços
a desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

4 comentários:

Anónimo disse...

Para onde foram os teus poemas??
Inês

Anónimo disse...

se calhar, é já sem retorno e nós ainda não sabemos.

Anónimo disse...

Sonhei esta noite
Juro
Que as tuas palavras não estavam aqui
Sonhei
Juro
Que me vinha alimentar
Sonhei
Juro
Que por entre html’s e ligações as sentia ainda
Sonhei
Juro
Que corria para as alcançar
Sonhei juro
que morria de fome

hoje acordei tarde e elas tinham desaparecido... (Dave Matthews enche-me os ouvidos enquanto escrevo, mas falta-me falta-me faltam-me as tuas palavras Nuno)
- é lamechice, eu sei, mas é verdade, esta saudade, esta sede, esta fome, este amar da forma como algumas pessoas enfurecem as palavras, transformando-as em alimento essencial. acordei agora, acordei tarde?
abraço

Anónimo disse...

nada como horas de trabalho para nos fazer acordar e assumir que os blogs são de quem os faz e só fazem sentido enquanto fizerem sentido para quem quer que os faça. (conversa enrolaaaada!) adiante, deixo uma só pergunta: oh Nuno, onde é que posso comprar o livro?
:))
dia feliz