sexta-feira, fevereiro 03, 2006

HÚMUS
Raul Brandão

Bem te procuro encontrar no fundo do meu ser. Rebusco-te. Às vezes, nos momentos trágicos, já não é contigo que eu deparo - é com outro ser que assiste sempre, como um espectador, a todos os meus exageros. Deitavas-te comigo, levantavas-te comigo, ferrado como um punhal - e não existias. Neguei-te. Expliquei-te. Reduzi-te às tuas verdadeiras proporções - e tu não existias! Atormentaste-me e fizeste-me sofrer mesmo quando já compreendera que não existias. E agora mesmo, quando o universo é outro universo, ainda te escarniças sobre mim como um fantasma.

Escusas de te rir - TU NÃO EXISTES. Dependias da morte e o que eu tinha na realidade era medo. Talvez medo para depois da morte - medo da minha alma em frente da minha alma, medo de aparecer nu e com pústulas diante do que é eterno. Carreguei-me como um fardo inútil. Põe-me a questão, põe-me todas as questões que quiseres. Tenho diante de mim este mundo e esta voragem, este mundo e o nada. Não te metas de permeio, já que não tens razão de ser. Seria mistificação sobre mistificação. Não me atrever agora é o absurdo. Porque, consciência, o que me importa é a parte interior - é a verdade sós a sós comigo, fechado a sete chaves, e essa é temerosa. Não tentes iludir-me. Não podes mentir a ti mesmo [...] Agora sim - agora estou livre e atrevo-me. Para sempre livre da morte e livre do tempo, calco-te aos pés. Nenhuma sujeição. Nenhum temor, nenhum fantasma. Sem escrúpulos! Uma força entre forças e mais nada. O mundo pertence-me. Pertence-me e olho-o cara a cara sem desviar o olhar. Sou a única força consciente, sem palavras que me diminuam, nem escrúpulos que me contenham...

Agora fala! Aproveita o minuto único, a infâmia, o enxurro, o sabor a fel e lágrimas da vida, ou enfileira-te, se podes, no estúpido rebanho, e reentra na vida quotidiana, feita de pequeninas regras e interesses...

1 comentário:

Miss Marble disse...

e neste livro a vida toda. ou mais.
muito bom tudo por aqui. de regresso, beijos.